quinta-feira, 20 de outubro de 2011

ABRIL DESPEDAÇADO

Sinopse:


Em abril de 1910, na geografia desértica do sertão brasileiro vive Tonho (Rodrigo Santoro) e sua família. Tonho vive atualmente uma grande dúvida, pois ao mesmo tempo que é impelido por seu pai (José Dumont) para vingar a morte de seu irmão mais velho, assassinado por uma família rival, sabe que caso se vingue será perseguido e terá pouco tempo de vida. Angustiado pela perspectiva da morte, Tonho passa então a questionar a lógica da violência e da tradição.


Ficha Técnica:

Título Original: Abril Despedaçado
Lançamento: 2001 
País: Brasil
Direção: Walter Salles
Atores: José Dumont, Rodrigo Santoro, Rita Assemany, Luiz Carlos Vasconcelos
Duração: 105 min
Gênero: Drama
Qualidade: DVDrip
Legenda: S/L
Áudio: Português BR


Comentário:



No filme Abril Despedaçado, Walter Salles fala do naturalismo como um fato da cultura dos povos. O naturalismo faz as coisas funcionarem como um relógio suíço. A vida é apresentada como um ato regulado por determinações concretas: a luta pela terra; a família como unidade de trabalho e de combate; o princípio do prazer em um plano remoto. Há essa tirania do princípio da realidade sobre o princípio do prazer. Trata-se de uma linha narrativa que vai quebrando as resistências do espectador. Depois, o espectador entra, com facilidade, na identificação com o personagem mais trágico: a criança que escolhe a morte. No trágico, o sujeito, em nenhuma hipótese, cede o seu desejo. Nele, o desejo é a resistência ao poder. E, no entanto, há este elemento da tragédia clássica que permanece como uma interrogação ao espectador: se o herói jamais escolhe a morte, então a criança não é um herói trágico. Qual é o desejo da criança no Abril despedaçado? Ela não quer que o irmão mais velho morra! Quando este irmão mais velho vira "o cabra marcado para morrer", o irmão menor expressa seu desejo publicamente em um claro desafio à tirânica autoridade paterna. Aí, ele opõe seu desejo à existência da vida como cultura política.
Neste filme, Walter Salles usa a estética do deserto para falar de um fenômeno universal na espécie humana: a cultura política. O desejo do irmão mais novo instala a philia como um traço universal da subjetividade humana. No filme, aphilia - uma categoria política da cultura grega clássica - cai no buraco negro do écran simbólico e retorna como uma partícula que vai compor uma subjetividade que se contrapõe a qualquer cultura política. A amizade entre os dois irmãos é um elemento da resistência à ordem patriarcal, é um elemento inscrito, como sentido, nas relações de poder entre a philia e a cultura política. O irmão mais velho leva, clandestinamente durante a noite, o mais novo a um espetáculo circense no vilarejo. Na volta para casa, o mais velho é castigado duramente pelo pai. Ele paga por ter realizado o desejo do irmão mais novo, desejo que abala o princípio de realidade da ordem patriarcal no pequeno sítio rural hiper-realista. Ora, este mesmo desejo do irmão mais novo leva o mais velho ao encontro de uma jovem mulher misteriosa que engole fogo e é trapezista; ela é capaz de tocar fogo no desejo dos corpos resignados para a morte; ela é capaz de encantar o corpo e o coração dos desesperançados no vôo do trapézio; é o anjo cor de jambo do erotismo gilbertiano. E assim, os desejos são o motor de uma resistência ao poder patriarcal e ao fatalismo da existência na cultura política do deserto.
Nesse filme terno e comovente, o amarelo-deserto é a cor que, em seu funcionamento como significante-mestre desta linguagem cinematográfica, articula uma fala que remete o espectador para o universal. Além de evocar a Escritura Sagrada do deserto, ela encadeia romances e ensaios modernos: A Relíquia (Eça de Queiroz); A vida de Jesus (Renan) e outros. No Brasil, Raduam Nassar é o romancista que criou a estética do deserto no nosso espaço romanesco. No Zaratustra, Nietzsche usa a estética do deserto como um signo da aristocracia do espírito. Já Deleuze pensa o guerreiro nômade como a máquina de guerra da estética do deserto. No filme, o guerreiro nômade é a máquina de matar. Há também a máquina de morrer na figura do cabra marcado para morrer. Esta é a metáfora do povo do terceiro mundo. Neste universo de máquinas reguladas por determinações cegas, os homens e os bois-trabalhadores se equivalem. Os dois bois da moenda são os personagens que, junto com o moendeiro, mostram a equivalência, pela metáfora, entre a natureza e a máquina na esfera do trabalho alienado. E esta é a metáfora do filme que mais surpreende o espectador. Pois, é como se o narrador dissesse para o espectador: mas afinal você ainda não entendeu a nossa desgraça? Para o espectador, resta esta fórmula inquietante: sou um boi-trabalhador nesta narrativa do maravilhoso? Fórmula hegeliana do trabalho alienado. Este talvez seja o único momento que o filme age sobre o espectador como um exercício de crítica do ato de assistir uma película. O espectador do cinema industrial americano é certamente o alvo deste exercício de poder. Este espectador é os bois que continuam circulando sem parar mesmo depois do fatigante dia de trabalho ter terminado para eles. O cinema americano faz os espectadores circularem eternamente na cultura industrial como subjetividade da lógica da mercadoria. É o mito de Sísifo no discurso do capitalista.
É admirável encontrar em um filme a construção, tão bem realizada, de um conceito de cultura política. E no filme, o espectador tem a experiência simbólica da sua cultura política. Para o espectador, o filme realiza a inscrição da sua cultura política no espaço simbólico universal. Neste riacho da caminhada, o espectador não é mais um espectador, ele é o sujeito que vive, com os personagens, a experiência da tragédia pós-moderna na superfície da cultura política. Neste plano do filme, o sacrifício não advém do dever, do supereu; ele não remete o espectador para a esfera do dever da sociedade burocrática, ele é a vontade do ego modelada pelo desejo das criaturas maravilhosas que habitam a narrativa de Abril Despedaçado. No ego, o desejo e o princípio do prazer existem como fenômenos universais que dissolvem a ordem patriarcal; e fazem o espectador esquecer da ordem burocrática. Seria isto também uma alusão ao fim do poder repressivo na contemporaneidade? No Freud moderno, o supereu é a in poder repressivo. Talvez uma das idéias do filme seja a de dar novos usos para o supereu freudiano em crise. Há uma cena na qual o riso da família - a mãe e os dois filhos - faz o pai tirânico dar gargalhadas incontroláveis. O riso do pai patriarcal não é uma quebra no mecanismo fatal da cultura política do deserto? Ele não pode ser olhado como uma esperança de alteração da fatalidade secular? Na cena, o riso do pai estraga a festa de risos da mãe com os filhos. Tal riso tira o prazer do riso dos outros. A mãe e os filhos param de rir, e o riso tirânico ressoa sozinho no deserto de homens e idéias. Será que para Walter Salles, essa cultura eletrônica - que agencia o desejo e o princípio do prazer em uma escala industrial - é o riso patriarcal capaz de calar a festa da cultura brasileira?
E para o leitor cético, há a oportunidade rara de jogar esta praga da atualidade, o ceticismo, na lata de lixo do cinema. Basta assistir uma única vez a este belo e sensato filme de Walter Salles. Para quem ainda trabalha com cultura brasileira, trata-se de um filme obrigatório. (José Paulo Bandeira da Silveira)








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