quinta-feira, 5 de maio de 2011

Delicada Atração (Beautiful Thing)

Sinopse:

O verão sufocante em Thamesmead, periferia de Londres, faz Jamie perder a vontade de estudar. Sempre que pode, o rapaz fica em casa vendo TV, aproveitando que sua mãe trabalha fora. Seus vizinhos também não dão bons exemplos. Leah foi expulsa da escola e passa os dias ouvindo discos. No mesmo conjunto de apartamentos mora Ste, um garoto forte que vive apanhando do pai e do irmão. Para fugir da violência, Ste busca refúgio no apartamento de Jamie, com quem acaba dividindo o quarto. Aos poucos, a relação dos dois transforma-se num grande amor. O escândalo explosivo destaca o comportamento da mãe de Jamie que encara os fatos corajosamente.
Ficha Técnica:

Direção: Hettie MacDonald
Roteiro: Jonathan Harvey
Origem: Reino Unido
Ano: 1996
Duração: 90 min.



1) O contexto familiar do jovem homossexual
Um dos pontos muito discutidos após o filme foi o contexto que favoreceria a emergência do jovem homossexual. Famílias desestruturadas, com a ausência de uma das figuras parentais, a violência doméstica e a carência afetiva. Às vezes existe de fato essa “desestruturação”, por as famílias não se organizarem mais segundo um ideal de família nuclear burguesa, por os casais se dissolverem, e haver rotatividade de parceiros, pelos pais, porém isso não determina a homossexualidade, embora faça parte do campo em que o sujeito está inserido e constitui sua personalidade.
Não é possível desprezar o contexto familiar do qual o sujeito fez ou faz parte. A homossexualidade é um fenômeno de origem multifatorial, multideterminada, e todos os fatores constituintes da história de vida do sujeito, quando temos acesso a eles, precisam ser levados em consideração para a compreensão do sujeito atual, em sua totalidade. Olhar para o contexto é indispensável para a compreensão do sujeito enquanto interação organismo-meio, contextualizado no tempo-espaço. O sujeito, a pessoa, não é uma abstração, mas uma relação de contato constante, integrando, assimilando e selecionando a cada momento os elementos que irão constituir sua personalidade, seu self.
2) O estereótipo dos papéis sociais (e sexuais) esperados do homem
Representado pelo jogo de futebol e pelas expectativas da mãe quando a filho participar de “atividades de meninos”, as representações sociais sobre os papéis sociais, sexuais e de gênero, se mostram como elementos importantes na constituição da pessoa, desde o momento em que nasce e é incorporado à cultura.
Tais representações, introjetadas pelo sujeito na constituição de sua personalidade, posteriormente se torna fatores de conflito interno da pessoa, ao descobrir-se homossexual, ao descobrir-se atraído por uma pessoa do mesmo sexo, não sendo possível responder às expectativas sociais do que se tem como “normal”. O confronto com essas representações, põe em choque o “ser gay”, “ser bicha” e outras expressões marcadas por forte preconceito e difíceis de serem integradas sem conflito. O sujeito entre em crise, no embate consigo mesmo e com a sociedade.
3) As estratégias adotadas por uma mãe solteira para cuidar sozinha de um filho
Não é incomum que mães solteiras, como a Sally, tenham múltiplos parceiros. Por vezes isso se constitui uma estratégia de sobrevivência, diante de dificuldades reais de manutenção de si mesmo e dos filhos. Uma mãe solteira ainda hoje sofre estigmas por não ter um marido, uma figura masculina que lhe sirva de proteção e de referência para os filhos. Principalmente em meios sociais de baixa renda, ter um companheiro – por pior que ele seja – representa segurança e respeito diante da comunidade. Às vezes as relações – que espera-se idealmente seja regida pelo amor e por sentimentos elevados e “transcendentes” – se dão por questões utilitárias, por questões econômicas ou pela esperança de se ter um pouco mais de segurança, ao ter uma figura masculina presente. Não é incomum que mulheres fortes e independentes se submetam a relações conflituosas com companheiros, pela necessidade de se ter um companheiro, alguém a quem se possa dizer “é meu marido, meu homem”.
Por outro lado, o cuidar sozinha de um filho, repercute de diversas formas sobre a subjetividade da mãe solteira, que se vê tendo que adotar os dois papéis parentais – de mãe e pai – às vezes se embrutecendo, deixando em segundo plano a dimensão feminina, da sexualidade e da busca pelo amor e a felicidade. Ser mãe passa a ser o elemento identitário mais pregnante, a “figura” principal constituinte de sua personadidade.
4) O preconceito e a violência (homofobia) vivenciada na escola
Desde muito cedo o jovem homossexual é vítima de preconceito, ao não se adequar a todos os papéis esperados pela heteronormatividade. Não é incomum que um jovem mais quieto, que não gosta de esportes, que não se aventura na conquista de meninas, seja desde cedo discriminado e vitimado por violências verbais e até físicas.
A presença de uma educação sexual mais abrangente nas escolas, que levasse em consideração a homossexualidade com uma outra possibilidade de vivência da sexualidade, descaracterizada de estereótipos negativos, seria uma alternativa necessária para reconfigurar as relações estabelecidas no contexto escolar – um dos principais contextos de socialização, de consolidação de valores, de formação de opinião e de identidade.
5) A vivencia em comunidade, o público e o privado interferindo nas relações interpessoais e no processo de vivência e afirmação da homossexualidade
Ao olhar novamente para o contexto em que o sujeito se insere, numa perspectiva mais ampla, englobando a comunidade – o prédio, a rua, o bairro, a cidade… – podemos intuir as diversas micro-relações de poder que se estabelecem. Um contexto mais amplo, que interfere na constituição do sujeito de forma subliminar, ao mesmo tempo em que defronta-o cotidianamente em situações de conflito com o outro, de choque ou de confirmação.
O bairro em que o Steve morava era um bairro periférico, de população negra, suburbana, com imigrantes indianos (a professora de educação física) e de outras nacionalidades, etnias e religiões. Um contexto complexo, heterogêneo, propiciador de situações de conflito e, ao mesmo tempo, relativizadora de “verdades”. No contexto mais próximo, do prédio, percebemos intrigas, conflitos entre visinhos, em que a vida privada é partilhada por todos, pelas “paredes finas” que dividem os apartamentos e pelos corredores, onde cada um atua como atores na trama cotidiana.
Conflitos entre Sally e Leah, por exemplo, em torno do papel e do valor da mulher, mostra perspectivas distintas sobre a sexualidade feminina, trazendo representações sociais do que seria uma “mulher decente” e uma “mulherzinha”. Questões como a rotatividade de parceiros, os amores entre visinhos, a descoberta da sexualidade, o aborto, tudo é discutino nas tramas sutis que se dão nas fofocas, nas ofensas, nos chistes. Esse é o palco da vida cotidiana e do senso comum, em que a vida é vivida de forma real, sem mascaramentos.
Neste contexto, também a homossexualidade é posta em cena, encenada, dramatizada, interpretada, submetida a avaliações do público, submetida a críticas, atravessadas por valores morais, por estereótipos, pelo senso comum – comunitário.
6) A iniciação sexual na adolescência
Representada tanto pelo casal Steve e Jamie, quanto por Leah e pelas meninas da festa em que participam, o filme traz de forma clara a “ebulição” que se dão na adolescência em torno da descoberta e experimentação da sexualidade. Podendo ser vivida com euforia, no movimento de busca insaciável pela experimentação, pela procura por parceiros, por beijos e transas, ou de forma mais retraída, cheia de dúvidas, com passos inseguros, temerosos, cheios de prudência. Nesse ponto, a sexualidade é vivenciada de forma paradoxal, variando as vivência de acordo com cada pessoa, com os contextos e oportunidades que surgem, em ritmos e tempos diferentes.
Steve traz um elemento a mais: a busca por informação através de veículos de comunicação (filmes, revistas), que podem funcionar como meios de orientação para a sexualidade, dando pistas e discas sobre os caminhos. Um contexto mais amplo, da cultura, que interfere na construção da identidade e da orientação sexual, através da construção e disseminação de discursos – canônicos ou de desconstrução da norma.
7) Os guetos como ambiente de socialização e de legitimação da homossexualidade
O bar gay em que Steve e Jamie foram pode ser visto como um gueto – um espaço social em que a homossexualidade é permitida e legitimada, diferentemente do contexto mais amplo da sociedade, que segue modelos e valores heteronormativos. No bar gay se experimenta a diversidade, a multiplicidade de manifestações e performances – gays, lésbicas, travestis, bissexuais, etc, todos tem seu espaço, sendo vistos e apreciados em suas diferenças. Os guetos aparecem como território aliado, espaço de vivência autêntica e espontânea, em que é possível viver papéis e fantasia, onde se pode ser a si mesmo ou travestir-se para o outro, nas conquistas, nas brincadeiras e nos encontros entre pessoas.
8) O confrontamento com a família – contar para os pais que se é gay. O movimento de choque e assimilação pela família do filho gay
Nos conflitos entre Steve e Sally e entre Jamie e o pai, se dá várias facetas que estão por trás do assumir-se gay diante da família. A família em geral é vista como a matriz primeira de socialização e construção de identidade. Assumir-se gay é confrontar-se com as expectativas dos pais sobre os filhos, as crenças sobre o que é certo e errado, o mitos e estereótipos que perpassam a fantasia dos pais sobre o que é homossexualidade. Ao mesmo tempo, essa questão transcende apenas a esfera da homossexualidade. Falar sobre sexo é um tabu familiar. Em geral, pouco se fala sobre o tema, e quando se fala, se reproduz representações e estereótipos, ou se restringe a orientações de como se deve prevenir contra gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, etc.
No caso de Sally, esta já sofrido com preconceitos e dificuldades, por ser mãe solteira, por ter de cuidar sozinha do filho, por ter vários parceiros. Defrontar-se com a homossexualidade do filho era mais um estigma a ser enfrentado, mais uma batalha a ser travada, consigo e diante da sociedade. Ao mesmo tempo em que entra em crise, em conflito e desorientação, ela também abre um espaço para o acolhimento, o diálogo, a troca. Ela se transforma nesse contato com o filho, se desarma, ressignifica a si mesmo, encarna outro papel e pode experimentar a dança.
No caso de Jamie com o pai e o irmão, “ser gay” passa a ser uma questão muito mais difícil de ser encarada a admitida. Ser gay, num primeiro momento, pode significar ser fraco, não se homem, ser mais suceptível à violência e ao despreso. Suas experiências de sofrimento tornaram-no rígido – o que se traduz na sua forma de vestir, em sua postura, em sua expressão facial. Experimentar contato com o outro, com Steve, é vivenciar um outro lado, que não o da dor. E ele só consegue se entregar à essa experiência quando ressignifica a figura do pai, ao vê-lo não mais como uma figura de força, temida e respeitada, mas como um estorvo, um bêbado, jogado na sargeta.
É inegável, a meu ver, os diferentes papeis exercidos pelos pais no processo de afirmação da homossexualidade.
9) O “sair do armário”, a afirmação social do “ser gay”
O “sair do armário” num contexto mais amplo, como assumir e encarnar o papel num contexto mais amplo se dá, no filme, com o caminhar de mãos dadas e dançar no meio da rua. Metaforicamente, a cena final do filme, traz a questão da “visibilidade” gay, do mostrar-se, do assumir publicamente, o que para muitos é algo absolutamente necessário, para se reivindicar direitos, ser reconhecido e respeitado, confirmado.
Esse movimento de sair do armário, no entanto, me parece como um dos últimos passos no processo de aceitação de si mesmo e de integração da identidade homossexual. É o desfecho do filme, o ponto ápice, a partir do qual irá se desdobrar outro enredo imprevisível. Mostrar-se é um exercício de liberdade, é sustentar uma escolha e responsabilizar-se por ela, é ter consciência de si e de que, na visibilidade, é visto, apreciado e avaliado pelo olhar do outro, porém de um outro ponto, do ponto de quem afirma a si mesmo com EU, podendo confrontar-se e negociar diretamente com o outro.
Essas foram as minhas impressões sobre o filme. Acredito que haja muitos outros pontos ainda que podem ser vistos e trabalhados. Cada personagem é construído de forma complexa e densa, cheios de faces, tensões e paradoxos.
Creio que o que se torna elemento fundamental dessa análise é a tentativa de se compreender a história a partir de vários pontos, levando em consideração os diversos elementos que constituem o todo o filme. Os múltiplos contextos (casa, escola, prédio, bairro, bar gay), o diversos níveis (individual, familiar, comunitário e cultural), que fazem parte do campo psicológico, do espaço vital de cada personagem. A construção das subjetividades se dá nas trocas, nas relações intersubjetivas, no trânsito de signos e representações, na emergência e descoberta de necessidades, nas múltiplas determinações da sexualidade vivida cotidianamente, a cada momento.

Artigo de Luiz Fernando Calaça, Psicólogo, psicoterapeuta, professor substituto do curso de Psicologia da UFBa e aluno especial de Filosofia Contemporânea (UFBa). Membro do UNISEX. 26. jan. 2009.     Fonte: Núcleo Universidade e Diversidade Sexual

Um comentário:

  1. e no final, deixam no ar o fato de a mae do jamie poder ser lesbica (ou bixesual).
    pela conversar dela com a vizinha, eu acho que ela é.

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